O REI DA VELA – E a Estética da Esculhambação – ES CRITA

Sensacional! Não posso começar este texto sobre o filme ‘O Rei da Vela’ de outro jeito. A peça revolucionária escrita em 1933 e que emergiu 30 anos depois através de uma montagem teatral histórica em 1967, ganhou um filme que tem vida própria e é muito ousado, muito mesmo! Da encenação permanece a direção genial de Zé Celso, as ótimas atuações, a criatividade dos figurinos e cenários, a beleza das maquiagens, mas é a montagem anárquica e revolucionária de Noilton Nunes que faz o filme ser o que é. A fragmentação, os cortes bruscos e inserções repentinas de imagens e sons sobrepostos não permitem a nossa acomodação. Ao lado de uma trilha-sonora, também inquieta, a montagem inventa uma narrativa original para a já originalíssima peça de Oswald de Andrade

Conhecer a peça aumenta o prazer já que o filme nos oferece uma nova abordagem e que é sensacional. Ele não reproduz, na tela grande, a encenação de 1967 gravada durante uma retrospectiva no Teatro João Caetano em 1971, pelo contrário, altera a ordem das cenas gravadas e arma um quebra cabeça com imagens contrastantes que explicitam as conexões da peça com a realidade. Ao mexer na seqüência de ‘O Rei da Vela’, a montagem disseca a cultura nacional através das cenas emblemáticas e que, através da encenação do Oficina, se tornaram definitivas. 

Neste caso é desnecessário se preocupar com spoiler. Conhecer de antemão o enredo deste samba ópera circense não estraga a surpresa, pelo contrário, nos faz absorver melhor os códigos manipulados pelos artistas onde a criatividade é uma das suas características mais fortes e o humor é abundante, logo de cara na apresentação dos atores e personagens estas características são escancaradas.

 Às vezes uma mesma cena acontece em cenários distintos, salta do palco do teatro para a paisagem natural onde é reproduzida. A fusão do externo com o interno aproxima o filme dos movimentos sociais que estavam rolando, mas o filme faz o seu próprio movimento incorporando no roteiro a longa trajetória, que alias é bastante conturbada. ‘O Rei da Vela’ demorou muito tempo para ficar pronto, e a sua história não está dissociada da do Teatro Oficina e a dos integrantes que se exilaram em Portugal durante a ditadura militar. E o filme desafia as convenções do teatro e do cinema ao incorporar histórias dentro da história. Entrelaça política e cultura onde o ‘é o proibido proibir’ de Caetano Veloso ecoa dentro do próprio filme que foi proibido e que se inicia de trás pra frente, com um longo prólogo que expõe a ebulição social do período e espelha o tempo que o filme demorou em vir à tona.

Zé Celso diz que 

‘O Rei da Vela’teve uma historia labiríntica internacional pra ser montado. Atravessou o Exílio do Teatro Oficina em 1974, e teve suas latas levadas clandestinamente pra Europa, pela Embaixada Francesa em SamPã por iniciativa de uma das atrizes do filme: a genial Maria Alice Vergueiro. A história deste filme atravessa a revolução Portuguesa dos Cravos, as fronteiras perigosas da Espanha ainda de Franco, chega a Paris, quase engolida numa inundação pelo Rio Sena. ” 

‘O Rei da Vela’ traz a terra em transe com a tropicália nas entranhas, assume a esculhambação como linguagem estética e com um humor demolidor rompe com o bom gosto. Sem maquiar a realidade miserável do Brasil o povo brasileiro, tão explorado pelos capitalistas como o Abelardo I, enche a tela em muitos momentos. Com o ‘O Rei da Vela’ a antropofagia entrou na roda e se materializou no e com o Teatro Oficina, local onde Oswald de Andrade encontrou abrigo e um grande aliado apaixonado que é Zé Celso que reinventou, ao lado de ótimos atores, o teatro brasileiro nos anos 60 que já tinha sido reinventado em 1933 com este texto até então nunca encenado. Revê-lo agora no confinamento ganha sentido especial, pois traz memórias de um tipo de teatro que gosta de acontecer no meio de aglomerações. Uma das sequências mais hilárias é a da Ilha que é encenada em uma paisagem natural com o público em volta muito próximo dos atores influenciando nas temperaturas das atuações.

Pois é e eu ia escrever sobre ‘Ham-let’ que estreou antes de ‘O Rei da Vela’ na web durante a pandemia, mas o filme me pegou como não havia acontecido das outras vezes quando o vi entre o final dos anos 80 e início dos 90 num cine da Boca do Lixo e anos depois no Itaú Cultural, mas até então não tinha visto a peça ao vivo e isto só veio acontecer em 2017 com re-montagem com o próprio Renato Borghi como Abelardo I. Rever ‘O Rei da Vela’ agora foi realmente incrível, todas as cenas são ótimas, mas a de Abelardo I e Sr. Pimenta e Abelardo I e o Intelectual Pinotti são duas que estão perfeitas.  Em um filme que tem Renato Borghi em uma atuação excepcional ao lado de Ester Góes, José Wilker, Maria Alice Vergueiro, Henriqueta Brieba também incríveis é injusto destacar apenas um, embora sem dúvida ele é o grande destaque.    

Cheio de contrastes ‘O Rei da Vela’ nos mergulha na monumentalidade da história, na grandiloqüência dos discursos reveladores da classe dominante saindo da boca do rei, na magia dos closes, nas sobreposições de sons e imagens que abrem veredas, no humor demolidor, nos desdobramentos da metalinguagem, nas intimidades dos bastidores e das coxias, nos despojamentos das preparações e em falas como: “eu sou um personagem do meu tempo”, “eu sou o primeiro socialista do teatro brasileiro”, “eu não sei trabalhar”, “eu sou uma fracassada”, “herdo cada tostão de cada morto nacional” imagens-sínteses da teatralidade da autoconsciência desnudada emergindo aqui e ali dentro de um filme abusado, excessivo, demais!

Vagner Luís Alberto

o FILME está DISPONÍVEL EMBAIXO ou CLIQUE AQUI)

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‘WHY THE HORSE?’ -A MORTA ESTÁ VIVA! – ES CRITA

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In Memorian da atriz Maria Alice Vergueiro que faleceu ontem republico o meu texto sobre a sua última peça
19/01/1935 – 03/06/2020
Maria

‘A poesia mente, mas a verdade, sendo o princípio da realidade, reduz à morte, à nossa morte. Amar a verdade seria amar a morte’.

Harold Bloom

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‘WHY THE HORSE?’ -A MORTA ESTÁ VIVA! – 

Quando entrou em cena, domingo dia 13/Setembro/15 no Galpão do Folias na última apresentação de ‘WHY THE HORSE??’, Maria Alice Vergueiro foi aplaudidíssima, aplausos emocionados e que foram recebidos com emoção por ela e pelo elenco. Calorosos o público e artistas abriram com a magia vibratória dos aplausos a peça que todos estavam ali pra assistir, peça onde Maria Alice Vergueiro vive a expectativa da morte e assiste o próprio velório.

Com muito humor e quase sem texto, a montagem extrai poesia da poesia e das imagens que cria, não por que despreze as palavras, elas estão em cena adormecidas com os autores no cenário túmulos-biblioteca. Onipresentes mesmo mortos, ou descansando, alguns desses autores a atriz falou em montagens marcantes durante a sua trajetória no teatro brasileiro.

Ao eliminar o excesso de falas e privilegiar os silêncios em ‘WHY THE HORSE? respiramos a morte, as cenas nascendo, a nossa própria vulnerabilidade e a fragilidade da existência. A peça é cheia de fragmentos e sensações onde realidade e sonho se misturam, assim como a realidade do teatro e a da vida. A morte, verdade intransferível paratodos, o lugar do inesperado, o local onde não se pode deixar de ir é o personagem ausente mais que presente em ‘WHY THE HORSE?’ e peça se propõe a ensaiá-la, tocá-la na presença de todos. Textos e a memória da atriz estão presentes como citações, como a magnifica cena projetada de Maria Alice Vergueiro de ‘KATRASTROPHÉ’ e graças ao vídeo as criações dos atores de teatro podem permanecer e roçar a eternidade.

Em oposição aos corpos ágeis dos atores mais jovens, que inclusive se deformam, a quase imobilidade da atriz devido a alguns problemas de saúde, mas eles não limitam o impacto emocional dos seus gestos e da sua expressão. Transgressora durante toda a sua carreira, a atriz não se deixou domesticar, embora aceite a morte não aceita o seu fim sem vivê-lo como um rito. Viva encena o seu velório e recebe o carinho do público na despedida e com essa montagem prolongou a sua vida sem ignorar que Velha Senhora um dia poderá vir fazer-lhe uma visita.

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Pra quem não conhece a atriz, Maria Alice Vergueiro atuou em montagens marcantes como ‘Eletra Concreta’ de Gerald Thomaz, em montagens do Teatro Oficina como ‘O Rei da Vela’ e ‘Pequenos Burgueses’, em ‘O Percevejo’ de Luis Antonio Martinez Correa, nas encenações irreverentes de Cacá Rosset-Ornitorrinco, e ainda surpreendeu ao dirigir As 3 Velhas’ onde também atuava sentada em uma cadeira de rodas e estava afiadíssima ao lado de seu parceiro Luciano Chirolli e Pascoal da Conceição.

Luciano Chirolli está a seu lado há muitos anos, a cumplicidade de ambos nos comove. Em ‘As 3 Velhas’ Luciano Chirolli tinha cenas inesquecíveis e engraçadas, como a do saboroso boquete, em ‘WHY THE HORSE?’ tem a do saboroso beijo demorado trocado com Maria Alice.  O ator tem outras cenas comoventes e engraçadas, cenas curtas mas que ficam na memória como uma em que fica balbuciando.

Quando Carolina Splendore Cameron entra em cima de um burrinho com os peitos de fora antecipando o velório, me senti dentro de um sonho e me lembrei dela, de Maria Alice em ‘Electra Concreta’ falando ‘mama aqui’, e além de tudo ambas tem o tule como que demarcando o espaço sagrado que é violado pelas atuações dos atores. Em ‘WHY THE HORSE?’ o tule está presente apenas no velório, mas nesta o público é quem pode violar a fronteira que separa atores e plateia. A cena, a do burrinho, indica o titulo da peça que traduzido é ‘POR QUE O CAVALO?’.

Todo o elenco esta de parabéns pela concentração, por se dedicarem a contracenar ao lado da atriz com a morte: Alexandre Magno, Robson Catalunha, Elisete Jeremias, Fabio Galvani Furtado (dramaturgia), Andre Stefano, Telumi Hellen e a todos que mesmo fora de cena estão presentes.

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Próspero em A Tempestade diz depois da temporada na Ilha, que de cada 3 pensamentos 1 será dedicado a morte, já ‘WHY THE HORSE?’ dedica todos os seus pensamentos a ela, a grande dama oculta. Mas não é a morte dos outros ou a morte simbólica individual, diária, ‘do aos poucos’, nos obrigando a ceder, e sim a morte morte, a morte definitiva onde o corpo inerte fica imóvel gelado no caixão.

‘WHY THE HORSE?’ é tão subversiva que os aplausos foram parar no inicio quando o elenco entra em cena pela primeira vez e não no final, no final não há aplausos, o fim não tem fim, a vida continua pra quem fica e pra quem morre não se sabe o que acontece, mas o cadáver fica exposto e o público pode se despedir da atriz. Aos poucos,  flores são colocadas sobre o corpo inerte e o velório se instaura. A atriz fica lá deitada como uma morta da própria morte, não mais de algum personagem. E eu me levantei, fui até o cadáver, olhei a cara da morta e ela estava viva, com as pálpebras semicerradas e olhos nos olhos, beijei sua boca na despedida e quase chorei.

Vagner Luis Alberto

Este texto foi publicado aqui neste blog no dia 

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Adriana Calcanhoto ‘SÓ’ e Bem Acompanhada Instaura Estados D’alma! – ES CRITA

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Adriana Calcanhoto ‘Só’ e Bem Acompanhada Instaura Estados D’alma! – ES CRITA

Numa certa manhã do confinamento me deparo, para o meu espanto, com o clipão de Adriana Calcanhoto boiando como notícia no mar virtual e foi assim, por acaso e sem perguntar, que ’tive notícias suas num mundo de notícias’ sobre ‘Só’ o novo álbum-imagem ou imágico da cantora. Surpreso pelo formato, encarei o clipão que dura 29m30 seg e adorei. O álbum foi produzido em poucos dias na quarentena, a cantora teve um surto criativo durante o confinamento, ela diz que quando se viu confinada estabeleceu uma meta: escrever uma música por dia.  E assim no isolamento nasceu “Só – canções da quarentena”, que é dedicado a Moraes Moreira. As imagens do clipão foram gravadas no dia 25/05/2020 em dois planos-sequência dentro do quarto e o álbum foi composto, produzido, mixado e masterizado entre 27/03/20 e 13/05/20.

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A artista encontrou saídas dentro dos limites impostos pelo distanciamento. Saber como e em qual circunstância foi gerado ‘Só’ valoriza ainda mais este projeto que surgiu de improviso e abriu novas veredas com a junção bem sucedida de imagens, temas e sons, inclusive por ceder os direitos autorais de “Só” para nove iniciativas diferentes como o Redes da Maré, Ação Cidadania e Rocinha Resiste.. O velho conceito de álbum foi reinventado com o clipão, a unidade do disco se apresenta nos sons de grilos onipresentes, nos planos sequências do clipão que captam estados d’alma, nos temas orbitando a quarentena e já é uma das melhores coisas deste 2020 pandemia.

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As canções tateiam com palavras e sons o estado atual da existência onde no horizonte visto pelas janelas há muitas incertezas e panelas fazendo também um som. Frases como “até o gado está baratinado”; “senta e estuda”; “o que temos são janelas”; “eu amava por nós sozinha”; ‘era só eu estar com você servia” “tive notícias suas num mundo de notícias” brotam aqui e ali e nos localiza. Entre as memórias aglomeradas de uma passado recente e um futuro incerto temeroso dos colapsos previstos pelas vidências e ciências, está o presente com as suas ausências e as barreiras de assepsia que nos isolam.

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São 9 canções inéditas que tem um encadeamento perfeito no plano sequência do clipão que sem cortes reflete este ‘em que ano estamos‘ sem interrupção do álcool gel, máscara e isolar-se é uma forma segura de prevenção. Em ‘Só’ os textos são breves, às vezes soam enigmáticos outras vezes ambíguos, sem dúvida que a configuração social inédita desafia aqueles que buscam as palavras para tentar expressar o estado psíquico, físico, espiritual e social atual e Adriana Calcanhoto conseguiu com brevidade, que está mais próximo do silêncio das ruas vazias, expressar com inteligência sentimentos de boa parte da população que está realmente confinada sem sair de casa. O que me espanta é que tenha produzido tudo isso em tão pouco tempo.

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No poema ‘América’ Carlos Drummond diz “Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la forma de conhecimento. Portanto, solidão é palavra de amor. Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas”. Para muitos artistas a solidão não é uma entidade estranha que dá medo, ao contrário é uma companheira, agora com pandemia a solidão tornou-se presente para muita gente, como para pacientes infectados que não podem receber visitas. E as canções que  surgiram inesperadamente estão completamente conectadas com a excepcionalidade da situação, capta o espírito do tempo repleto de ausências, distâncias, lembranças cujo canto traz o que é e o que já não é.

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Em um álbum perfeito, destaco ‘Ninguém na Rua’com a deliciosa onomatopéia funkeada inspirada pelo batidão dos peitos distanciados na quarentena fluindo e pairando zen minimalista nas cidades vazias; ‘Eu Vi Você Sambar’ é irresistível com cordas lindas no final;  ‘O Que Temos’ os sons do piano e das panelas o que está dentro e fora se encontram nas ondas sonoras que voam pelas janelas; ‘Tive Notícias’ a canção mais delicada, muito bonita com sopros pontuando delicadamente como se assoprassem as notícias trazidas pela velocidade das tecnologias; ‘Lembrando da Estrada’ outra beleza de arranjo, com a pandemia só restaria aos artistas lives e as lembranças de um tempo de deslocamentos e aglomerações bem-vindas? Mas como o show não pode parar e não parou ‘Só’ o reinventa levantando a lona no seu quarto; ‘Bunda Le Lê’ é o melhor funk composto pela artista, a compositora tem experimentado essa sonoridade, com poucas palavras cria uma canção ambígua com a cara dos tempos de quarentena e consciência política onde até Anitta quer aprender; ‘Corre a Munda’ encerra lindamente evocando sonoridade portuguesa, ‘onde vagueia sem eira nem beira‘ a compositora que não quer morrer sem antes voltar a Coimbra e mesmo sem ter encontrado a palavra pra decifrá-la em vez de lamentos distanciados lhe oferece o seu canto que chega suavemente até nós!

Vagner Luís Alberto

Foto: Leo Aversa

CLIPÃO (click aqui pra assistir)